Delírios de um defunto

As máquinas de teletransporte, tão comuns na ficção, parecem funcionar de forma simples. Curiosamente, cada vez faz menos sentido chamá-las de ficção, já que hoje já é possível escanear objetos em 3D com um celular e reproduzi-los com impressoras 3D — tecnologias acessíveis há bastante tempo.

Como funcionaria uma máquina de teletransporte?

O processo imaginado é direto:

  1. Escanear o objeto (ou pessoa).

  2. Destruir o original.

Na prática, essas duas etapas poderiam ocorrer ao mesmo tempo. O objeto seria então convertido em informação.

Uma vez reduzido a um arquivo (aqui usado apenas como metáfora, não necessariamente digital), fica muito mais simples transportá-lo para qualquer lugar. Em teoria, poderia até ser levado fisicamente em um pendrive. No destino, os dados alimentariam uma impressora 3D capaz de reconstruir o objeto.

E se fosse você no teletransporte?

Agora, imagine entrar nessa máquina. Vamos assumir que tudo funcione perfeitamente, sem falhas ou imprevistos.

Você entra, é escaneado, destruído e, em questão de instantes, “acorda” no destino.
Você tem suas memórias, sente-se a mesma pessoa, o teletransporte foi perfeito. Se existisse algo como um “hash” de seres físicos, ele seria idêntico antes e depois do processo.

Mas… será mesmo você?

O paradoxo da identidade

Apesar de tudo parecer correto, há um detalhe perturbador. O você original, que entrou na máquina, foi destruído. O que desperta no destino é outro você — um clone perfeito.

Tecnicamente, não deveríamos chamar de “clone”, porque isso sugere diferença, quando aqui o ser recriado é indistinguível. Ainda assim, é inevitável reconhecer: aquele que entrou nunca mais verá nada.

Se alguém pudesse recriá-lo mil anos no futuro, seria uma cópia perfeita de você, com suas lembranças e identidade. Mas o você que está lendo este texto agora nunca veria esse futuro. Apenas aquele que fosse recriado viveria essa experiência.

Esse dilema não é novo. O filósofo Derek Parfit (1940–2017), em Razões e Pessoas, argumentou que a identidade pessoal não é fundamental.

Ética

E aqui surge uma pergunta ainda mais perturbadora: se o ser recriado não é tecnicamente o mesmo, ele ainda deveria carregar a responsabilidade moral de seus antecessores? Poderia ser punido pelos crimes ou parabenizado pelas boas ações do "você original"?

Em tese, sim — afinal, possui todas as memórias e a mesma estrutura psicológica. Na prática, não, embora isso geraria uma complexidade ética desnecessária.

Desnecessária porque o morto não importa. O você destruído não sentirá a tristeza de estar morto. Os vivos — tanto os que ficaram no passado quanto o recriado no futuro — é que lidam com as consequências.

Isso certamente influenciaria nossa decisão de usar uma máquina de teletransporte. Se você escolhesse fazê-lo, deveria sentir remorso por ter se "matado", mesmo continuando vivo? Em termos espirituais, seria considerado suicídio?